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Covid-19 criou novo mapa político na América Latina

No fatídico domingo, dia 15, em que Jair Bolsonaro furou o isolamento para saudar os que protestavam (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/bolsonaro-deixa-isolamentodo- coronavirus-e-de-carro-participa-de-ato-pro-governo-na-esplanada.shtml) contra Congresso, STF e imprensa, o presidente do Peru, Martín Vizcarra, tomou uma decisão histórica.

Pela primeira vez desde a guerra civil contra o Sendero Luminoso, todo território peruano foi colocado sob estado de emergência (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/isolados-no-peru-por-coronavirus-brasileiros-reclamam-de-falta-de-apoiodo-itamaraty.shtml).

Escolas e fronteiras fechadas, quarentena à população, apenas serviços essenciais abertos.

Vizcarra foi à TV falar de cifras de contaminação, diretrizes da OMS e do “dever de proteger os mais vulneráveis”.

Bolsonaro gastou o dia tuitando imagens de multidões nas ruas. À época, o Brasil tinha quase o dobro de casos confirmados de Covid-19. Nesta semana, quando Bolsonaro fez um pronunciamento pedindo a
reabertura das escolas (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/em-pronunciamento-bolsonaro-criticafechamento-de-escolas-ataca-governadores-e-culpa-midia.shtml), argentinos completavam quatro dias sob a quarentena “preventiva e compulsória” imposta pelo presidente Alberto (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/argentina-tera-quarentena-total-a-partir-desta-meianoite.
shtml)Fernández (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/argentina-tera-quarentena-total-a-partirdesta-
meia-noite.shtml).

Quem estiver à toa na rua, avisou Fernández, será processado criminalmente pelo Estado.

“Em algum momento, esse povo [brasileiro] terá de fazer uma autocrítica sobre o governante que elegeu”, disse um apresentador do Canal 5 da TV argentina, depois de descrever Bolsonaro com palavras, digamos, pouco lisonjeiras.
Até o mês passado, Vizcarra e Fernández pareciam animais políticos de filos completamente distintos.

O peruano é um ex-governador, de centro-direita, quase sem partido. Como vice-presidente, viu o poder cair no seu colo quando o caso Odebrecht fulminou Pedro Pablo (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/03/novopresidente-do-peru-martinvizcarra-e-sobrevivente-da-era kuczynski.shtml)

Kuczynski (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/03/novopresidente- do-peru-martin-vizcarra-e-sobrevivente-da-era-kuczynski.shtml). O argentino só havia sido eleito vereador, até ser içado à Presidência pela
máquina peronista (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/10/imprensa-argentina-aponta-vitoria-dealberto-
fernandez-em-1o-turno.shtml) e, sobretudo, por Cristina Kirchner, sua vice e eminência parda do governo.

Fernández é um enigma ideológico, amarrado a grupos da esquerda kirchnerista e acossado pelo risco de novo default. Subitamente, a Covid-19 reorganizou o mundo –e a nossa região– com base em uma nova tipologia política, que se sobrepõe às categorias de antes.

Esquerda ou direita, governos que prezam pela ciência e pela vida humana estão respondendo à crise de forma semelhante: confinamento mandatório e, desde o primeiro momento, planos massivos de auxílio financeiro. Duas semanas antes de o Congresso brasileiro assumir a iniciativa, Vizcarra já anunciara um programa de renda mínima a quase 10% dos peruanos.

E, do outro lado, há o terraplanismo sanitário, econômico e político de líderes como Bolsonaro. Com ele, figura o mexicano Andrés Manuel López Obrador, que exorta concidadãos a se abraçarem (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/na-contramao-presidente-mexicano-pediu-beijos-abracos-e nada-dequarentena.shtml).

Juntos no negacionismo, Bolsonaro é da ultradireita; AMLO, um nacionalista associado à esquerda.

Philip Stephens, do Financial Times, defendeu que “a atual geração de líderes políticos será julgada pela forma como enfrentará a pandemia”, e não por sua coloração política.

Na América Latina, o julgamento já começou. Em cerca de uma semana, o apoio a Vizcarra saltou 35 pontos e hoje está em 87% –feito especialmente impressionante no Peru, onde a piada é que a aprovação de presidentes costuma ser menor do que as taxas de crescimento do PIB.

Na Argentina polarizada entre kirchneristas e macristas, o respaldo a Fernández subiu da casa dos 55% a 79%.

Enquanto isso, no Brasil, as panelas batem, governadores de diferentes partidos viraram força de oposição e grupos da base bolsonarista –como militares e ruralistas– começam a perguntar pela saída de emergência.

O temor de que a recessão global alimente ainda mais formas de populismo e antipolítica faz sentido. Foi esse, afinal, o legado da crise de 2008. Entretanto, na América Latina do início da pandemia, o campo oposto –seja esquerda ou direita– parece politicamente bem mais saudável.

Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp. sua assinatura pode valer ainda mais.

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